Gênero textual: Conto


A Utopia

Ana Júlia Caetano Fernandes 


Ela morava em um sobrado no fim da rua 15 no distrito de Dimolândia. Um lugar quase ermo e um tanto sombrio. O sobrado era antigo, há tempos não faziam uma reforma. As folhas das árvores ao lado dançavam pela arcaica construção, como em uma grande festa e ninguém preocupava-se. Será que não vivia ninguém? Dizem que sim.

Amélia, era o nome dela, a filha do Sr. Fausto Furtado, o tataraneto do fundador da cidade, Sr. Luis Melo Furtado. Depois que o pai morreu, quero dizer o pai de Amélia, a moça foi distanciando-se da sociedade, para ela a vida era um escárnio sem sentido, os outros eram o inferno e assim ela só existia. Será que existiu? Dizem que sim. E é o que importa.  Falam até que Amélia andava pela noite com um longo vestido azul que seu pai lhe dera antes de falecer. Andava feito alma penada, chorando como criança que perdeu-se no mundo. E perdeu-se mesmo. Não tinha ninguém. O pai não tinha irmãos, o avô e avó paternos já haviam se encontrado no tranquilo paraíso nebuloso, ou no infinito horizonte de uma esfera. A família da parte da mãe, não se sabe muito, nem ao menos o nome, será que existiu? Dizem que sim. 

Enfim Amélia não tinha ninguém. Apenas alguns pássaros a faziam companhia durante a manhã, mas a noite era solitária. Raramente saia e quando saia raramente era vista e quando era vista, todos sabiam. Mas já haviam passado tanto tempo da morte do pai, e a menina tinha um luto eterno, uma angústia, um sofrimento confuso. Ninguém podia ajuda-la. ninguém queria. Ninguém a conhecia. Como ajudar alguém tão subjetivo e misterioso? Que não se expressa, que não consegue vencer os tenebrosos obstáculos do orgulho e procurar alguém que lhe aconselhe. Como ajudar alguém que talvez nem existe? Mas dizem que existe. Já viram, não é mesmo?

Certa vez, dois meninos iam empinando pipa próximo ao sobrado, onde tinha um lote desabitado. Corriam como pássaros livres, a falsa liberdade os satisfaziam, até que o objeto contemplado por eles cai na árvore próximo a tal misteriosa moradia. Um dos pássaros, quero dizer menino, sobe na árvore para descobrir se os resquícios da pipa ainda podiam ser reutilizados. O menino fica em um galho de costas para uma janela. Ele tenta pegar a pipa, mas está tão longe, precisa alcançar outro galho, está tão cansado, encosta a mão na parede próxima a janela. Pela sua curiosidade magnífica que já é própria do genótipo de uma criança, ele olha na janela e como sem nenhuma explicação, cai. Ele vai vendo sua vida passar como um filme que de repente escurece na mais sombria incerteza. 

Ainda bem, seu pai havia chegado antes que um desastre pudesse acontecer. Ele só desmaiou, mas quando acordou o pobrezinho ficou mudo, nada conseguia falar, nenhuma palavra saia, os olhos arregalados, tentava explicar com as mãos em uma mímica indecifrável. Dizem que ele havia visto ela. O rosto pálido, os escuros cabelos soltos, o vestido azul, os olhos arregalados e atentos para a ridícula criatura humana. Ela fez o menino perder a voz. Será que ele a viu? Dizem que sim. Tentar descobrir a verdade, seria uma utopia.

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